quarta-feira, 7 de março de 2012

Mulheres desobedientes

Há momentos em que é preciso contrariar ordens superiores ou normas vigentes, especialmente sob regimes autoritários e em contextos de repressão. A história bíblica mais conhecida de desobediência de mulheres encontramos em Êxodo 1.15-21. No antigo Egito viviam e trabalhavam as parteiras Sifrá (“beleza“) e Puá (“moça“), que no parto assistiam tanto mulheres egípcias como hebreias. As duas parteiras não tiveram a chance de constituir uma família própria. Por isso as pessoas chegavam até a desprezá-las, achando que Deus lhes havia negado sua bênção. Mas isso não as desanimava nem abalava sua fé. Mesmo não tendo filhos próprios, ajudavam outras mulheres a ter os seus.
O texto bíblico narra que o faraó tentou cooptar Sifrá e Puá para seu plano de extermínio das etnias estrangeiras no Egito, ordenando-lhes matar todas as crianças hebreias do sexo masculino por ocasião do parto. Como a parteira era pessoa de confiança e como geralmente não havia testemunhas no momento do parto, isso não seria tarefa difícil para Sifrá e Puá. O texto bíblico diz no entanto: “As parteiras, porém, temeram a Deus e não fizeram como lhes ordenara o rei do Egito; antes deixaram viver os meninos”.
O compromisso das parteiras com a vida foi mais forte do que a política da autoridade constituída. O texto chama isso de “temor de Deus”, ou seja, uma postura ética baseada na fé e na convicção de que atentar contra a vida de pessoas frágeis e indefesas é um atentado contra o próprio Deus. Somente um ato de desobediência civil pode vir ao encontro do plano de Deus: preservar a vida do povo.
Por isso Sifrá e Puá são levadas a julgamento. A pergunta do faraó – “Por que fizestes isso e deixastes viver os meninos?” – é uma acusação. Como as duas parteiras não buscam o martírio, já que delas depende a vida de outras crianças, elas ocultam a verdade: “As mulheres hebreias não são como as egípcias; são vigorosas e, antes que lhes chegue a parteira, já deram à luz os seus filhos” (v. 19). O argumento apresentado pelas parteiras aparentemente convenceu o faraó, talvez por ter, pelo menos em parte, correspondido à verdade. Foi uma meia-verdade.
Mas a história não está interessada na impressão do rei do Egito; ela se concentra nas mulheres. Nota-se que a meia-verdade (ou meia-mentira) não é criticada pelo autor da narrativa. É que não se espera das parteiras um ato heroico. Deus quer mantê-las vivas para, através delas, continuar preservando vidas. Além disso, o relato bíblico parece querer comprovar o princípio de Provérbios 19.27: “O temor do Senhor conduz à vida” – sim, à vida plena. Por isso a história das duas mulheres desobedientes termina assim: “E, porque as parteiras temeram a Deus, ele lhes constituiu família” (Êxodo 1.21). Na época, isso era considerado vida plena e realizada.
Sifrá e Puá dão-nos uma bela lição de cidadania e coragem. Mesmo não sendo mães, elas arriscam sua vida pelos filhos de outras mulheres. Não se submetem cegamente ao poder. Mostram que a fé pode requerer um ato de desobediência civil. Elas também nos ensinam que fé e ética não podem ser separadas e que há momentos na vida em que precisamos optar entre compactuar com regimes que promovem a morte ou defender a vida das pessoas frágeis e indefesas.

* Texto escrito ppelo rev. Nelson Kilpp - Especialista em Antigo Testamento, pastor da IECLB


Texto cedido pelo autor- publicado na Revista Novo Olhar da Editora Sinodal nº 39